domingo, 16 de janeiro de 2011

Além de Gérson

O editorial deste mês da revista Trip traz um texto que aborda a condição atual da nossa sexualidade.

Além de Gérson

Esta edição vem pra alertar para a ignorância que nos assola quando o assunto é sexo

Pouco antes dos primeiros movimentos da polícia invadindo os morros cariocas no fim de novembro, era possível ver, por ruelas e escadarias das comunidades, garotas de 12 ou 13 anos passando com calcinhas e minishorts colados ao corpo e tops transparentes, no exercício escancarado da sedução sexual como instrumento de poder e ascensão em ambientes onde práticas incestuosas e violência sexual contra menores é algo que beira o corriqueiro. No dia seguinte à invasão do Complexo do Alemão, o país inteiro gastava espaço na mídia e horas de saliva em esquinas e bancos do metrô para discutir um diálogo que muita gente classificou como patético, em que o personagem Gérson da novela das oito confessava a um psicanalista atônito sua tara secreta, de espiar homossexuais em “atos libidinosos” nos banheiros públicos “fétidos”, como ele fazia questão de frisar ao mesmo tempo em que garantia: “Mas eu não sou homossexual!”.

Não é preciso ser Freud, nem Flavio Gikovate, para entender o que uma cena que trata voyeurismo gay como algo tão imundo tem a ver com os moleques de 16 anos que quebram lâmpadas de vidro na cara de supostos inimigos homossexuais. Tudo sob a incrível (e falsa) alegação de que teriam sido “cantados” na rua. Enquanto isso, próteses de silicone para nádegas começam a ameaçar o reinado até agora insuperável das feitas para aumentar os seios. Garotas adolescentes ricas pedem plásticas de peitos e bunda de Natal, enquanto o papa arrisca declarações titubeantes sobre os casos em que o uso de camisinha seria tolerável para os padrões da igreja católica...

Da genitalização excessiva das relações sexuais ao oceânico desconhecimento dos detalhes e sutilezas de nossa própria anatomia, parece paradoxal o fato de que, em plena chamada era da informação e do conhecimento, sejamos completos ignorantes sobre a amplitude real da nossa sexualidade e os complexos sistemas que movem nossa mente, hormônios e organismo. Psicólogos a mestres espirituais tântricos fazem coro ao concluir que a má vazão de nossa sexualidade deságua em algumas das maiores mazelas humanas. E obviamente não se trata de privilégio nacional. Agressividade, depressão, consumismo, neuroses, certos tipos de câncer... seriam apenas algumas das terríveis heranças que carregamos por manter o sexo acorrentado entre as quatro paredes de nossos preconceitos.

Dos filmes pornôs estrelados por ex-galãs da Globo e travestis a cursos que prometem um orgasmo intergaláctico... há incontáveis demonstrações de um quase desespero em busca do entendimento mínimo dessa força enorme, sobre a qual pairam todas as dúvidas e inseguranças e só resta uma certeza: não há nada mais essencial para que possamos existir.

Já conseguimos mover membros artificiais usando a força do pensamento de um macaco sentado do outro lado do planeta, mas não sabemos exatamente como funcionam os membros entre nossas próprias pernas, cada vez mais, diga-se, movidos pela força de pílulas e outros estímulos menos orgânicos.

Deciframos os segredos da nanotecnologia e podemos nos comunicar com alguém a milhares de quilômetros de distância, mas não sabemos muito bem o que escondem as reentrâncias do corpo de quem repousa ao lado na cama.

Somos capazes de reparar microacidentes cerebrais sem deixar sequelas, mas não sabemos quase nada sobre o que se passa nesse mesmo pedaço de nosso corpo quando o assunto é libido, sexualidade e tudo o que provavelmente decorre deles...

Se esta edição da Trip pudesse prestar um serviço apenas, deveria ser o de alertar para a profunda e melancólica ignorância que assola nossa cultura quando o assunto é sexo. Uma ignorância velada pela casca liberal e malandra, de um povo supostamente sensual e resolvido. Se pudesse prestar um segundo porém, seria o de mostrar que há caminhos que merecem ser trilhados com inteligência e bom-senso, que descobrir que conhecemos e exploramos apenas 10% de nosso potencial quer também dizer que há outros maravilhosos 90% esperando para serem penetrados, descobertos e usufruídos.

Paulo anis Lima, editor

Fonte: http://revistatrip.uol.com.br/revista/195/editorial/alem-de-gerson.html

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